03/08/2005

Ruy Belo



Há um poema de Ruy Belo que gosto muito.


Idola Fori

Eu sei diversas coisas
saber é afinal a minha única preocupação
Sei pouco de manhãs
mas talvez possam dizer de mim que amei o mar
e cada árvore que me viu passar
e insistir na vida como uma canção em voga
Quem mais que eu
quem foi esqueceu?
Estamos malfeitos pronto
Para quê a doçura no olhar
de uma mulher certos dias?
O morno calor do sol rasante pelas tardes
de setembro na senhora da guia
senti-lo em abril numa sala voltada ao poente
de súbito sabendo de todos os papéis
ou outra eternidade que não essa
Talvez ouvir egmont sentindo-me importante de repente
ou então conversar sobre o poeta à beira de água
chegar a mangualde ao pôr do sol
ou a duas igrejas na semana santa
ouvir os sinos na matriz vizinha
cheirar madeira nova nas gavetas
fechar a porta sobre todos os cuidados
cantar a triunfante juventude
Não mais andar perdido de ano em ano
Não mais a morte questão para ociosos
à tarde no café dos reformados
Oh quem dera ser católico
ou pelo menos morar alguma vez
em lisboa ou nos arredores de lisboa
Não há remédio nenhum
esqueci-me de tanta coisa
Sei que isto não é grande coisa
mas nenhuma outra coisa me é dada
O que é preciso é que não doa muito
Depois que me escondam na terra como uma vergonha


in Homem de Palavra[s] (1970)


Aliás, Ruy Belo é o poeta que mais invade o meu imaginário.
Todo a sua singela demanda pelo lugar-comum, a busca pelos feitos heróicos ao virar da esquina, pelo prazer em sentir o forte calor de um pôr-do-sol na face.
E acho a sua linguagem cativante na sua simplicidade mas numa atitude em que combate constantemente com a sua tendência em se tornar erudita. Essa linguagem que escreve episódios da vida de todos nós como os acontecimentos épicos que são. Essa linguagem sem a irritante pontuação a atrapalhar o linho condutor do pensamento.
É este o poema que tem uma das citações que mais uso na vida: « Sei que isto não é grande coisa / mas nenhuma outra coisa me é dada / O que é preciso é que não doa muito / Depois que me escondam na terra como uma vergonha». O testemunho vindouro perfeito.
O primeiro poema que li dele é “O Portugal Futuro”. É também aquele que deixa a esperança nos passos que damos e que os mesmos sejam em frente, sem desvios ou meneios de cabeça. Um poema transformado em lição cada vez mais actual.

O Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

in Homem de Palavra[s] (1970)