23/03/2008

Carne de Cristo

A minha mulher, que era uma Socialista ferrenha, converteu-se e agora é uma Católica Comunista. Não vê nisso qualquer contradição e, quando lhe falei das Teologias da Libertação de Leonardo Boff de pregar o Evangelho social e como Jesus Cristo foi o primeiro comunista, mais abraçou a sua nova ideologia. À partida negou, mas no fundo acredita que a nova denominação que lhe atribuí é a mais adequada.
Na Sexta-feira Santa, em virtude dos seus ideais só nos alimentámos de peixe. Um robalinho e um cherne grelhados ao almoço, umas postas de salmão assado ao jantar – um deleite. Gosto muito de peixe porque não o como com tanta frequência quanto a sua rival: carne. A cultura e a tradição têm destas coisas boas: a ciclicidade com que repetimos os hábitos que os nossos pais nos impunham (e que, ironicamente, agora já não seguem) que achavamos bizarros (eu pelo menos achava, porque este meu gosto por peixe é um palato já da minha fase adulta), agora ocorrem como que por acidente e para mútua satisfação de pertença à família, que é a minha.
Também há tradições que se renovam e se actualizam. Como é o caso dos filmes pascais que passam na televisão recorrentemente. Para a geração dos nossos pais esses filmes eram o “Quo Vadis” ou “Os Dez Mandamentos” (se bem que este último passava mais por altura do Natal) que, ano após ano, passavam com a mesma repetição com que o cabrito e o borrego ocupam as mesas pascais desde tempos imemoriais; para a geração actual esse filme é “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson, que já vai na sua 3ª repetição televisiva pascal, desde que estreou no cinema em 2004.
Acho que o filme “A Paixão de Cristo” é bastante adequado para a Páscoa. Não só porque retrata o episódio bíblico que o mundo cristão celebra nesta altura; mas também porque termina com a renovação (a ressureição de Cristo), sentimento presente desta altura do ano e que, já antes do Cristianismo, se celebrava em virtude da mudança da Estação e do seu rejuvenescer. Para além do mais, a sua brutalidade e ferocidade é paradigma dos tempos contemporâneos, em paralelismo com o celulóide delico-doces dos filmes bíblicos de outrora.
Não sou crente. Também não sou anti-cristo, nem ateu. Simplesmente não acredito na existência de Deus porque, pura e simplesmente, nada me provou até à data a sua existência. O mesmo já não ocorre com a figura de Cristo: provas há e acredito que tenha existido, que tenha sido um rabi com uma teologia nova para a altura mas não acredito na sua paternidade e condição divina.
No entanto e por causa disso mesmo, gosto deste filme. Vi-o pela primeira vez na excelente sala de cinema do Cine-teatro do Monumental. Na altura, impressionei-me com a violência explícita e grafismo martirizante, retratando de forma crua mas apaixonada um dos episódios mais cativantes da vida de Cristo: o seu martírio, queda e ascenção. Afinal, foi daqui que emergiu o ícone que leva muitos seres humanos a usá-lo ao pescoço.
A primeira vez que o vi, pensei logo de imediato e de forma asséptica, “que excelente mecanismo de propaganda; os novos fiéis que este filme vai conseguir arrebanhar para a congregação”. No final do filme e mais tarde, achei que se trata de uma bela obra de arte simplesmente porque se trata do fruto que advém da paixão fervorosa de um homem por uma temática que afecta, a crentes e descrentes.
Agora, na Páscoa, sempre que ele se repete na TV, revejo-o. A última versão que passou na Sexta, já está um pouco censurada na parte da primeira chaga de Cristo (as chibatadas) na qual retiraram a cena em que salta parte da sua costela em primeiro plano. À medida que o filme avança, vou recordando as histórias que li e ouvi no meu curto catecismo (só fiz um ano, depois entediei-me e desisti): o José de Arimateia, os 30 dinheiros, o Santo Sudário.
A cena mais épica para mim é a visão do alto após a morte de Cristo e cai a primeira gota do dilúvio na qual a mesma cruza o campo de visão da câmara. E “seja feita a sua vontade” e foi. Quem já leu “O Evangelho segundo Jesus Cristo” sabe do que falo.