28/01/2008

A Matança do Porco

Hoje estava a ver uma reportagem na SIC sobre uma Matança do Porco e da ameaça à sua extinção devido às exigências da ASAE. Recordei-me da primeira vez que vi uma Matança.
Foi nas traseiras da casa da minha tia paterna, perto da Batalha.
Naquele tempo, o porco foi morto à antiga: com o gume afiado da faca do matador. Ouvi dizer que agora matam o porco com um choque eléctrico no cachaço. Mas naqueles tempos menos assépticos que os correntes, aquilo foi uma festa para os sentidos.
As mulheres com os alguidares. Os homens com as mangas arregaçadas. A carrinha de caixa aberta que chega com o porco enorme amarrado com grossas cordas de sisal. O bicho relutante em descer e, ao aperceber-se da sua sina, a grunhir violentamente. Lembro-me de alguém ter tido um aparte de “cabrão do porco já sabe ao que vai” ou algo do género. O porco que guinchava. Os guinchos estridentes e que feriam os ouvidos. Os homens que se acercam do porco e o envolvem. A faca omnipresente. Caiu em cima da mesa tingida de sangue. A única mulher que se misturou na turba masculina saiu de lá com o alguidar cheio de sangue. Um sangue escuro e espesso, quase sólido. O maçarico liga-se. Aquele fooooo contínuo que preencheu o ar. Deu lugar ao intenso cheiro da carne queimada do porco. No interior da casa, o porco é esventrado de alto a baixo. Meu pai e a sua lição de anatomia através das semelhanças internas entre porco e homem. Os órgãos pendentes, deslocados, viscosos, reluzentes. Recordo-me de olhar para o gancho que segurava o porco e pensar quão frágil parecia dado a dimensão do bicho. Lembro-me de alguém que retalhava o porco com mestria. E foi ele que preparou as bifanas – a primeira parte do porco que comi. Ao pé do sítio onde o porco esvaía sangue, havia uma divisão mais pequena mas muito iluminada onde estavam as mulheres sentadas agarradas a tachos e partes internas do bicho. Foi minha mãe que me esclareceu que estavam a preparar os enchidos.
Memórias fugazes dado o tempo que já passou. Entretanto também não vi muitas mais.
Não sou daqueles tradicionalistas à força. Aliás, o progresso foi e é feito com base no quebrar das regras da Tradição. Mas algo que também acredito é que a excisão do Passado, como se ele nunca tivesse existido, é um contra-senso e nada benéfico para a aprendizagem dos povos.
Todas estas movimentações de regulamentação do sector alimentar, se não têm esse intuito, a ideia que passam através da sua subjectividade e exigência desmesurada é que são manobras de destruição do pequeno negócio, da pequena manufactura.
São os casos dos ataques velados de restrições à Matança do Porco. São as dificuldades levantadas às queijeiras familiares da Serra da Estrela. São as medidas europeias que interferem na conservação dos queijos secos do Mediterrâneo.
Tem de haver fiscalização e controlo de qualidade de forma a garantir, também, a saúde pública e qualidade final dos produtos. Mas não à custa da destruição da cultura de um povo.
Não sou tão exagerado como o Mendes Bota e apelidar a ASAE de “pides”. A mim eles parecem-me mais uma Tropa Avançada dos interesses económicos das grandes Corporações da Alimentação.