18/02/2008

Dilúvios

As marcas que o temporal deixou

Devia eu ser ainda um catraio dos meus 6, 7 anos e recordo-me de estar eu, a minha mãe e o meu irmão em casa (o meu pai estava fora de Lisboa no “serviço”) e olharmos desolados para a velhinha televisão a preto e branco, que se encontrava muda na sua ausência de fonte de alimentação.
Foi na altura das grandes cheias da década de 80. Espaçadamente, existiam breves períodos em que a luz voltava e podíamos ver na televisão as imagens caóticas das planícies ribatejanas inundadas pelo Tejo que se tinha agigantado; eram estas imagens intercaladas com visões citadinas da zona ribeirinha de Lisboa, bem como da Ribeira portuense, alagadas pelo caudal dos respectivos rios que beijavam as janelas dos primeiros andares dos seus prédios à beira-rio.
Mas tal ocorria espaçadamente. O que era recorrente, era a minha mãe acender as velas vermelhas de cera retorcida enfiada nuns velhos castiçais (que por certo ainda os terá) para alumiar a escuridão que se abateu na nossa casa nessa longa semana.
Eu, orgulhosamente, nasci e cresci num subúrbio a norte da cidade de Lisboa. Numa terra a norte de Sacavém, que fica a norte de Moscavide (onde, por acaso, mais tarde vim a constituir família), que fica a norte dos Olivais… Aí fui-me habituando a algumas condicionantes das intempéries.
A pluviosidade nesse planalto na margem direita do Tejo tinha algumas idiossincrasias.
O aumento da sua dimensão muitas vezes fez com que ficasse no apeadeiro à espera de um comboio que tarde chegaria ou não chegaria de qualquer forma, visto ter ficado retido na Póvoa ou então em Alverca – era sempre uma das duas.
Uma vez, quando ainda não tinha a Carta recordo-me de ir com o meu pai de carro e, ao atravessar a ponte que cruza o Trancão, a sua linha de água estava tão próxima da ponte que os carros passavam à vez pela ponte e no máximo da sua aceleração.
Outra, quando já estava na universidade, foi um fatídico de inundações por toda a Lisboa. A água invadiu estações subterrâneas do Metro. Criou um curto-circuito tal no funcionamento das linhas da CP – só estava a funcionar de Sta. Apolónia até Sta. Iria. Foi um dia de engarrafamentos de proporções bíblicas: viam-se diversas pessoas apeadas a preferir andar a pé até ao seu local de destino; alguns estacionavam as viaturas para as virem buscar mais tarde; eu próprio preferi ir a pé deste Entre Campos até casa!
Mas o que mais me ficava na retina (aconteceu por diversas ocasiões) era estar no topo do andar dos meus pais e observar cá em baixo a água a fluir, a cobrir o asfalto da rua como se de um rio se tratasse, a levantar tampas de esgoto e a arrastar lama – e não era um rio, era somente a água da chuva à procura de um buraco para onde pudesse escoar sem o encontrar. Esta imagem, de tal forma intensa, influenciou a minha predilecção por habitar em andares de alguma elevação. Quando morei numa cave, sempre que chovia, ficava do género formiguinha a revirar e a limpar os escoadouros do logradouro.
Agora, estou um pouco mais a norte do país (Braga) e também já passaram alguns anos por mim (tenho agora 32) e continuo a ver na televisão estas imagens dantescas de inundações a assolar a cidade pela qual tenho tanto carinho. O meu gostar e o meu carinho em nada resolve este mal que perdura na nossa cidade capital (e não afecta somente esta cidade); nem tenho os conhecimentos técnicos ou arquitectónicos para planificar a rectificação desta incoerência urbanística; nem é meu, o poder económico para aliviar o fardo das desgraças que estes azares causam à vida dos nossos concidadãos – mas creio que uma obra e ideia estrutural está em ordem para sanar este mal cíclico, de forma a que não tenha de ser depois a minha filha a ter de me arregaçar as calças para que não as molhe.