14/08/2005

O Fracasso da Democracia


Existe um dito frequentemente repetido na actualidade que, lamentavelmente, torna-se o adjectivo do comportamento do indivíduo da sociedade actual: ignorância = felicidade.
Refiro este aforismo para descrever os movimentos recentes para as próximas eleições Autárquicas. Apesar de existirem outros casos, penso de momento nas candidaturas de Fátima Felgueiras (FF) para o Município de Felgueiras, a de Isaltino (Morais) para o de Oeiras e a do Major (Valentim Loureiro) para o de Gondomar.
Na minha óptica as eleições autárquicas são o episódio democrático no qual os candidatos e possíveis futuros autarcas-governantes estão mais próximos do seu eleitorado e, assim sendo, existir uma relação de conhecimento mútuo entre concidadãos: aqueles que governam e aqueles que contribuem e são governados; não ocorrendo aquele distanciamento alienante no qual aqueles que elegem desconhecem na totalidade aqueles que vão eleger como gestores do seu futuro económico-social. Isto é apenas uma opinião pessoal e compreendo que muitos estejam agora a pensar “este gajo é ingénuo”.
Tomando, a título de exemplo, que as Autárquicas são a Democracia no seu momento representativo mais diminuto (sem com isto retirar qualquer importância a este acto), tal como se de uma amostragem mais pequena se tratasse quando comparadas a um acto eleitoral mais abrangente, permitam-me afirmar que as candidaturas destes três personagens (bem como de outras), a FF, o Isaltino e o Major são o paradigma da indiferença dos eleitores acerca das acções de quem os governa.
As atitudes menos claras destes três políticos, dos seus problemas com a justiça, dignas de personagens de um filme de gangsters, género Scarfaces lusitanos, levanta, ou deveria levantar, alguma suspeita ao seu eleitorado. Não afirmo que os mesmos são culpados antes de haver qualquer veredicto, mas tantos casos de contas offshore, sacos azuis, enriquecimentos não justificados, peculatos, tráficos de influências, compadrios, caciquismos, porreirismos e amiguismos e, vivendo nós num país em que, infelizmente, a culpa morre solteira, no qual onde não há fumo sem fogo, penso que os meus congéneres cidadãos deveriam tomar tudo isto em nota de conta e, mesmo não havendo qualquer decisão ou punição judicial agradar-me-ia ver uma que fosse eleitoral.
Quando um animal é maltratado, ou em vias de, reage com desconfiança e rancor... Por isso, não compreendo como os munícipes desses concelhos, que já tiveram oportunidades eleitorais para os castigar e, já nessa ocasião tinham conhecimento dos seus possíveis actos ilegítimos (como no caso de Felgueiras), não desconfiaram e agraciaram-nos (à FF, ao Isaltino e ao Major) com uma nova Maioria Absoluta.
Já acho ofensivo e desavergonhado a existência destas candidaturas mas o apoio popular a legitimar as mesmas só prova que o Povo, inexplicavelmente, continua ter memória curta e, mais grave que tudo, a preferir a crença cega nos seus líderes (justos ou não) que lhes traz a felicidade de outrora de não terem de pensar – e mesmo de exigir – numa gestão que seja regrada, justa e com o objectivo do bem-comum.
Chamem-me pessimista – e espero sinceramente estar enganado – mas os resultados do próximo dia 9 de Outubro, lamentavelmente, irão provar o que digo.

03/08/2005

Ruy Belo



Há um poema de Ruy Belo que gosto muito.


Idola Fori

Eu sei diversas coisas
saber é afinal a minha única preocupação
Sei pouco de manhãs
mas talvez possam dizer de mim que amei o mar
e cada árvore que me viu passar
e insistir na vida como uma canção em voga
Quem mais que eu
quem foi esqueceu?
Estamos malfeitos pronto
Para quê a doçura no olhar
de uma mulher certos dias?
O morno calor do sol rasante pelas tardes
de setembro na senhora da guia
senti-lo em abril numa sala voltada ao poente
de súbito sabendo de todos os papéis
ou outra eternidade que não essa
Talvez ouvir egmont sentindo-me importante de repente
ou então conversar sobre o poeta à beira de água
chegar a mangualde ao pôr do sol
ou a duas igrejas na semana santa
ouvir os sinos na matriz vizinha
cheirar madeira nova nas gavetas
fechar a porta sobre todos os cuidados
cantar a triunfante juventude
Não mais andar perdido de ano em ano
Não mais a morte questão para ociosos
à tarde no café dos reformados
Oh quem dera ser católico
ou pelo menos morar alguma vez
em lisboa ou nos arredores de lisboa
Não há remédio nenhum
esqueci-me de tanta coisa
Sei que isto não é grande coisa
mas nenhuma outra coisa me é dada
O que é preciso é que não doa muito
Depois que me escondam na terra como uma vergonha


in Homem de Palavra[s] (1970)


Aliás, Ruy Belo é o poeta que mais invade o meu imaginário.
Todo a sua singela demanda pelo lugar-comum, a busca pelos feitos heróicos ao virar da esquina, pelo prazer em sentir o forte calor de um pôr-do-sol na face.
E acho a sua linguagem cativante na sua simplicidade mas numa atitude em que combate constantemente com a sua tendência em se tornar erudita. Essa linguagem que escreve episódios da vida de todos nós como os acontecimentos épicos que são. Essa linguagem sem a irritante pontuação a atrapalhar o linho condutor do pensamento.
É este o poema que tem uma das citações que mais uso na vida: « Sei que isto não é grande coisa / mas nenhuma outra coisa me é dada / O que é preciso é que não doa muito / Depois que me escondam na terra como uma vergonha». O testemunho vindouro perfeito.
O primeiro poema que li dele é “O Portugal Futuro”. É também aquele que deixa a esperança nos passos que damos e que os mesmos sejam em frente, sem desvios ou meneios de cabeça. Um poema transformado em lição cada vez mais actual.

O Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

in Homem de Palavra[s] (1970)

Interesses de Fogo

Os interesses, vulgo tráfico de influências, grassam até todos nós acharmos normal, acharmos que faz parte do nosso dia a dia.
Todos nós temos um amigo que, íntimo ou não, que recomendamos para aquele trabalho, que nos arranja aquela pechincha, que conhece alguém que conhece alguém que nos ajuda a ter aquilo que pelos meios legais não conseguimos alcançar.
Até nem discordo completamente com esta lógica de funcionamento: considero preferível trabalhar com alguém conhecido com o qual tenho confiança do que um total desconhecido cujo Currículo tem 50 páginas e iguais anexos.
Mas algo que não tolero (e espero que o comum cidadão também não) é que insultem a minha inteligência.
Dois casos:
Vi no passado domingo uma reportagem na SIC, “Asas de Aluguer”, que falava do negócio de milhões do aluguer de meios aéreos para combater os fogos a empresas particulares que perdura DESDE 1996. A diferença entre um aluguer de um desses transportes a mim ou a um de vós e o mesmo tipo de transporte ao Estado é em montantes em que a factura sai bastante mais cara ao Estado português; este facto aliado ao facto da ausência de interesse da parte dos Governos que se sucedem em se dotarem de transportes aéreos para combate aos fogos florestais e assim garantir a independência económica do Estado nesse sector é estranha e bizarra. Ainda mais, quando temos conhecimento da existência de um programa que dotava a Força Aérea de competências no combate a incêndios florestais que, inexplicavelmente, terminou antes de começar em 96.
Leva a pensar: é de louvar um Estado que rodeia-se de empresas da sua confiança, mas é execrável um Estado que faz negócios menos claros quando estão envolvidas a vida de bombeiros, o sofrimento de populações, o futuro verdescente das gerações vindouras.

P.S.: Num outro apontamento – que não está em nada relacionado com este que acabei de escrever – ontem, numa atitude sem precedentes (lol), o Governo, pela mão do recém-chegado Teixeira dos Santos, saneou a administração da CGD, numa autêntica atitude de JFB (Job For the Boys) com a banda sonora de Sérgio Godinho, “Arranja-me um Emprego”.